Sendo
feriado municipal na Chamusca, Almeirim e Salvaterra de Magos, podemos afirmar
que as pessoas que vivem junto à Ribeira de Muge se encontram hoje em dia de
descanso. Conhecido por vários nomes, o dia designa-se por “Quinta-feira da
Ascensão”, “Dia da Ascensão”, “Quinta-feira da Espiga” ou “Dia da Espiga”. É a
comemoração da Ascensão de Cristo aos Céus, quarenta dias depois do Domingo de
Páscoa, dia em que ressuscitou.
Contudo,
esta é uma festa celebrada pela Igreja Católica em sobreposição a uma festa
pagã inserida no ciclo da floração (quando as plantas rebentam, depois do
inverno, correspondente aproximadamente à primavera). Todas as festas deste
período, nomeadamente o Dia da Espiga, caracterizam-se “pela procura de
parceiros conjugais e a solidificação dos laços familiares ou de vizinhança já
existentes” (Santo, 1999: 117). A esta acresce a celebração das produções
agrícolas que já estão em fase de germinação avançada por esta altura.
Com
a “apropriação” das festas pagãs pela Igreja Católica Romana, assistimos a uma
mistura de elementos pagãos e cristãos neste dia. Assim, podemos encontrar para
além da celebração religiosa, que em Portugal se comemora no domingo seguinte,
um dia de ócio, em que tradicionalmente os jovens vão passeando pelos campos em
grupo, apanham a espiga e fazem a sesta no monte. Estando os jovens sozinhos,
ou seja, ausentes do olhar atento dos pais, é igualmente um dia intimamente
ligado aos ritos de iniciação sexual. A espiga é na verdade um ramo, que para
além de uma espiga de trigo tem também outros cereais, como a aveia, e que
simbolizam o pão. A estes são adicionados um ramo de oliveira (símbolo do
azeite, da paz e da luz), parras de vinhas (vinho e alegria), alecrim (saúde e
força), malmequer (ouro e prata) e uma papoila (amor e vida).
Também
na Ribeira de Muge encontramos um afeto especial por este dia, considerado um
dos mais sagrados, mas que nem por isso deixamos de encontrar uma mistura de
elementos religiosos e pagãos. Considerado “um dia santo tão grande, que diz que
havia uma hora que nem os passarinham iam ao ninho” (Evangelista, 2004: 127), são
comuns as histórias de pessoas que foram contra este preceito e esbarraram em
qualquer inconveniente de origem transcendente. Como o homem que foi curar a
vinha, com dois pulverizadores, e os dois se partiram, assim como um terceiro
emprestado. Ou a mulher que fez uma fornada de pão em Quinta-feira de Ascensão
e quando o cortou ele escorria sangue. Sangue também encontraram no serrote uns
homens que foram serrar no Pinhal do Trinta, assim como uma mulher num lençol
que estava a lavar ou uma outra que ficou com fios de sangue na parede que
caiou em Quinta-feira da Ascensão.
Podemos
assim ver que é religiosamente reprovável o trabalho neste dia, seja ele de
índole doméstica ou profissional. Há o célebre caso do Doutor Figueiredo, que
mandou os seus trabalhadores irem com os bois para o campo em dia de
Quinta-feira da Ascensão, com um trágico desenlace. É um poema cantado, que
podemos ouvir aqui e ler abaixo:
Quinta-feira de Ascensão
Quinta-feira de Ascensão
É um dia muito guardado
Real Doutor Figueiredo
Mandou trabalhar o gado
Cale-se aí meu patrão
Que Deus o pode castigar
Ou tu fazes o que te eu mando
Ou senão boto-te a andar
Os criados coitadinhos
Foram p’ra Quinta lavrar
Chegou-se a malvada hora
De os bois se incendiar
Chegou-me agora a notícia
Trago os bois na Quinta a arder
Real Doutor Figueiredo
Voltou para trás e foi ver
Ele assim que lá chegou
A cavalo no seu carrão
Voltou-se p’ro povo e disse:
A todos peço perdão
Um homem que lá morreu
Metia horror e paixão
A cabeça separada
Não cabia no caixão
Ó que golpe, ó que golpe
Ó que golpe este tão forte
Não me livrou os meus bois
Também o não livrou da morte
Torradas novas torradas
Lá p’ros lados de Palhais
Real Doutor Figueiredo
Ficou diferente dos mais.
Contudo,
existe também a parte pagã. “Saíamos pelos campos, rapazes e raparigas, íamos
em ranchos, a cantar, apanhávamos a espiga, sentávamo-nos no chão, apanhámos
túberas e pútegas. Brincávamos, fazíamos um baile, jogos. Arranjavam-se
namorados.” (Evangelista, 2014: 160). As cantigas existentes relativas a este
dia (aqui e aqui, reproduzidas abaixo) têm um cariz fortemente
ligado a ritos sexuais, que mencionamos acima, e estão desprovidas da dimensão
religiosa. O falo masculino é equiparado à espiga, e a envolvente da trama é
sempre de cariz naturalista, sejam “os campos” ou “a seara”. Sobretudo a
segunda cantiga apresentada remete para a iniciação sexual, enquanto que a
primeira demonstra mais a continuação ou intensificação da atividade,
acompanhado pela floração primaveril.
Por
fim, e pela inferência do que aqui tratamos, podemos afirmar que o “Dia da
Espiga” está ligado à dimensão pagã, seja a recolha da espiga, símbolo da
floração, ou ligada aos ritos de iniciação sexual. Por outro lado, a designação
“Dia da Ascensão” liga-se principalmente ao rito religioso.
Maria da Conceição,
Maria da Conceição,
Um verdadeiro peixão,
Muito boa rapariga;
Pediu licença ao patrão,
Mas só á patroa não,
Para ir apanhar a espiga.
O patrão autorizou,
E quando esse dia chegou,
Era um gozo de bringel;
Vai a patroa à cozinha,
Dá com a rapariguinha,
Estava a aviar o farnel.
Assim que a patroa entrou,
À criada perguntou:
– O que fazes Conceição?
– Estou o farnel a
arranjar,
Para ir a espiga apanhar,
Pedi licença ao patrão.
–
O patrão não manda em ti,
Tu hoje não sais daqui,
Quem
manda sou eu agora;
Responde a moça a sorrir:
– Pois se não me deixar
ir
Desde já me vou embora.
A patroa mais serena,
Por ter da criada pena,
Porque ela não é má;
Diz-lhe
então: – já está na hora
Rapariga vai-te embora,
Mas tem cautela por lá.
–
Descanse minha senhora,
Saiu pela porta fora,
Animada a Conceição;
Nem a patroa julgava,
Que
o farnel que ela arranjava,
Era também p’ro patrão.
Quando ela regressou,
A patroa perguntou:
– Ouve lá ó Conceição!
Nos
campos por onde andaste,
Por acaso não encontraste,
Meu marido e teu patrão?
A rapariga corou,
E a patroa exclamou,
Ao ver-lhe o rosto corado:
– Já sei tudo rapariga
Foste apanhar a espiga,
Que
eu também tenho apanhado!
– Quando eu era solteira,
Também nessa quinta-feira,
Fui à espiga muitas vezes;
Tanta espiga eu apanhei,
De uma vez até inchei,
Andei assim nove meses.
Quinta Feira da
Espiga
Fui um dia passear
Quinta-feira de Ascensão
Com a minha rapariga
Cheguei ao meio da seara
Meti-lhe a espiga não mão
Cachopa não queria a espiga
Agarra a espiga cachopa
Agarra a espiga cachopa
Não estejas a desmaiar
Rapariga duma cana
Agarrou-a com tal gana
Já não a queria largar
Quando foi da primeira vez
Que eu lhe arranquei os três
E os olhos me revirou
Rica prima mete, mete
Rica prima mete, mete
Que ainda ao fundo não chegou
Em chegando o dia dela
Não queria a espiga
Mas depois leva com ela
Mas a cachopa ao princípio dava ais
Não queria a espiga
Mas depois já queria mais
Mas a cachopa ao princípio dava ais
Não queria a espiga
Mas depois já queria mais
Mas nesse dia era o grande dia dela
Não queria a espiga
Ó depois leva com ela.
Bibliografia:
EVANGELISTA,
Manuel
(2004). Lendas da Ribeira de Muge. S/l:
Ed. Junta de Freguesia de Fazendas de Almeirim e Junta de Freguesia da Raposa.
EVANGELISTA,
Manuel
(2014). Jesuína Vitória: uma mulher da
Ribeira de Muge. Paço dos Negros: Ed. de autor.
OLIVEIRA, Ernesto
Veiga (1984). Festividades Cíclicas em
Portugal. S/l: Publicações D. Quixote.
SANTO, Moisés
Espírito (1999). Comunidade Rural ao
Norte do Tejo seguindo de Vinte Anos Depois. Lisboa: ed. Associação de
Estudos Rurais da Universidade Nova de Lisboa.
Texto: Samuel Tomé
Recolha: Manuel
Evangelista