A Ribeira de Muge fica situada na orla de um dos maiores desertos humanos de Portugal, a floresta de Entre-Muge-e-Sorraia. Esta região pode exibir ainda hoje uma cultura com traços característicos muito próprios, mormente a rude cultura dos pastores, cabreiros e dos negros que aqui habitaram. São estas especificidades que a Academia persegue, "subindo ao povo", como nos diz o grande Pedro Homem de Melo, recolhe, estuda e divulga.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Os burros no Paço

Hoje que é o dia internacional do burro, porque não contar-lhes uma história, verdadeira, acontecida no Paço Real da Ribeira de Muge e a publicar em futuro livro de título: Burros da Ribeira de Muge.
Pena é continuar a acontecer hoje.

A burro morto..., ou os Burros no Paço

  Os monumentos por mais importantes que sejam e mesmo que de real paridela, nascem, vivem e precisam de carinho e bom trato para não tombarem sem honra nem glória. Tal qual como acontece com os jumentos.
O Paço da Ribeira de Muge é um destes casos. Situado em Paço dos Negros, que outrora fora terra de muitos burros, ergue-se num sítio singular e nasceu por real vontade, para o real desenfado, a coroar um tempo glorioso da História nacional. Quem diria que cinco séculos após, o que fora uma bela moradia de reis e príncipes, envolvida por um frondoso pomar, seria elevada a um monte de desprezadas ruínas e a um raso e feio chão que uns tantos teimosos burros charnequenhos continuam a acariciar, para enfado da real nobreza concelhia que, sem rei nem lei, lhe vai sentenciando a morte.
O Paço vinha decaindo desde o alvor do século 19, ao tempo dos Condes de Azambuja. Com a Casa arruinada: “ó Tomé, tu é que és rico, eu é que sou pobre...”, as filhas petulantes e gastadoras, só havia lugar à degradação. Com o arrendamento a Tomé, Magriço de parentela e sogro de Manuel Francisco Fidalgo, aforamento a este no início de 1900 e posterior venda em 1918, visão não houve, nem dinheiro, para evitar a ruína. No Paço, tombados eram agora alguns aposentos, e como “a burro morto...”, as altivas ruínas reais tombaram e rastejaram na lama das pocilgas; mantidos alguns aposentos para habitação, a capela foi celeiro, os edifícios da real montaria foram adega, palheiro, galinheiro, curral.
A ajudar à ruína, logo os rapinantes espalharam a fama dos ricos azulejos hispano-árabes deste Paço. Raro era o dia em que não aparecia um “estrangeiro” mercadejador de arte para desbaratar os restos do rico monumento régio que fora pequeno mas cheio de comodidades.
Todo o cobiçoso que ali chegava, quer fosse a título oficial ou particular, levava o que encontrava. Azulejos, moedas romanas e de outras eras históricas, urnas, lápides funerárias, potes de barro, pedras tumulares, as últimas imagens, alfaias e relíquias da capela, etc..
A própria plebe que, à jorna, cavava na horta real, gente que das redondezas ali vinha trabalhar, bastas moedas e outras peças encontrou tomando-lhes a posse. Não raro, ficaram na sua pertença, sem honra nem glória, até lhes perder o sítio.
Frazão de Vasconcelos, historiador pioneiro do Paço, revela-nos de que na década de 1920 uma colecção de azulejos hispano-árabes dali sacou para o Museu Arqueológico do Carmo.
Duas montanhas de escórias de ferro que remontavam quiçá a milénios, em 1953 resolveram o candente problema da Câmara Municipal de calçar a vil areia das estradas. E assim se escondeu, quem sabe se não um sítio da Idade do Ferro, a incitar a uma pesquisa na busca de um possível filão de ferro e outros metais. Certamente perdeu-se um sítio arqueológico valorizador do local em termos patrimoniais e de turismo no futuro.
Falecido Manuel Francisco Fidalgo, a mulher e os filhos ignorando o valor de todas aquelas peças, que diziam ser do tempo dos moiros, continuaram a deixar surripiá-las a todo o vendilhão que aparecia.
Com as partilhas outros interesses se levantam, o nosso passa a ser meu, e, agora, os herdeiros fartos de verem tanta gente subida a delapidar aquilo que era seu – um padre era um dos melhores fregueses de raridades do Paço –, o facto de ser um monumento da época histórica mais rica do país, a preservar, não comovia tão distintas figuras, ainda hoje neste tempo de políticos conhecedores e informados que bebem do fino e que batem no peito, não comove, entravam, roubavam, destruíam, transtornavam até o trabalho da Casa de moagem e agricultura, pelo que deram ordem de proibição de que dali fosse levada mais qualquer peça.
Mas, vendo bem…, a troco de uma qualquer benesse…
– Agora?! A burro morto... Ria-se a mulher, e a malta que ali trabalhava e que também se abichava com alguns achados. E a delapidação à sucapa continuou. Um banco de azulejos foi oferecido a um militar de patente para livrar da tropa um mancebo, neto do velho Manuel Francisco Fidalgo. Outros cadeirões de azulejos hispano-árabes perdeu-se-lhes o rasto. Uns tantos resta-lhes o esqueleto de argamassa a secar ao sol. Agora, só o “banco do Rei Preto”, outrora refúgio de namorados, ali jazia a degradar-se com uma panela mascarrada em cima.
O presidente da Câmara, Torrão Santos, sabendo da existência deste último banco, pertença de um neto, por herança, um belo dia eis o presidente na demanda do cadeirão de azulejaria, e pronto para levar o Banco do Rei Preto para enfeitar recém-criado museu da Casa do Povo.
António Batata, com outros jornaleiros das Fazendas, andava a limpar a vala do moinho. Traziam os burros a pastar e, o burro, já velho e doente, tombou no chão.
A patroa que, vinda do lado de baixo, junto à vala do moinho, ao ver a desgraça do burro, lhe grita: – Ó Antóino dá-lhe favas que o que ele tem é fraqueza!
Batata donde estava vê o senhor presidente a entrar no pátio e como corria entre os trabalhadores a proibição de se abotoarem com mais achados: – Ó patroa chegou o doutor Torrão. Vem aos azulejos!
– Dá-lhe favas, Antóino…
Ele insistia: – Ó patroa chegou mais um aos azulejos!
– Deixa-o vir! Agora tanto faz, já roubaram tudo… Olha dá-lhe favas – insistia, com pena de ver o burro a agonizar no chão.
– É, patroa, isto a burro morto, cevada ao rabo!

  
Nota: Este “Banco do Rei Preto” foi cedido à Câmara Municipal de Almeirim por Manuel Fidalgo, neto e herdeiro de Manuel Francisco Fidalgo.
- A única coisa que exigi foi que pusessem lá o meu nome de doador. (Não consta que o tivessem feito).
Regressou ao Paço no dia 1 de Julho de 2005, vindo do estaleiro da Câmara Municipal, onde fora encontrado na rua, após ter estado cerca de cinco décadas no museu da Casa do Povo.