A Ribeira de Muge fica situada na orla de um dos maiores desertos humanos de Portugal, a floresta de Entre-Muge-e-Sorraia. Esta região pode exibir ainda hoje uma cultura com traços característicos muito próprios, mormente a rude cultura dos pastores, cabreiros e dos negros que aqui habitaram. São estas especificidades que a Academia persegue, "subindo ao povo", como nos diz o grande Pedro Homem de Melo, recolhe, estuda e divulga.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Hoje é feriado na Ribeira de Muge

Sendo feriado municipal na Chamusca, Almeirim e Salvaterra de Magos, podemos afirmar que as pessoas que vivem junto à Ribeira de Muge se encontram hoje em dia de descanso. Conhecido por vários nomes, o dia designa-se por “Quinta-feira da Ascensão”, “Dia da Ascensão”, “Quinta-feira da Espiga” ou “Dia da Espiga”. É a comemoração da Ascensão de Cristo aos Céus, quarenta dias depois do Domingo de Páscoa, dia em que ressuscitou.

Contudo, esta é uma festa celebrada pela Igreja Católica em sobreposição a uma festa pagã inserida no ciclo da floração (quando as plantas rebentam, depois do inverno, correspondente aproximadamente à primavera). Todas as festas deste período, nomeadamente o Dia da Espiga, caracterizam-se “pela procura de parceiros conjugais e a solidificação dos laços familiares ou de vizinhança já existentes” (Santo, 1999: 117). A esta acresce a celebração das produções agrícolas que já estão em fase de germinação avançada por esta altura.

Com a “apropriação” das festas pagãs pela Igreja Católica Romana, assistimos a uma mistura de elementos pagãos e cristãos neste dia. Assim, podemos encontrar para além da celebração religiosa, que em Portugal se comemora no domingo seguinte, um dia de ócio, em que tradicionalmente os jovens vão passeando pelos campos em grupo, apanham a espiga e fazem a sesta no monte. Estando os jovens sozinhos, ou seja, ausentes do olhar atento dos pais, é igualmente um dia intimamente ligado aos ritos de iniciação sexual. A espiga é na verdade um ramo, que para além de uma espiga de trigo tem também outros cereais, como a aveia, e que simbolizam o pão. A estes são adicionados um ramo de oliveira (símbolo do azeite, da paz e da luz), parras de vinhas (vinho e alegria), alecrim (saúde e força), malmequer (ouro e prata) e uma papoila (amor e vida).

Também na Ribeira de Muge encontramos um afeto especial por este dia, considerado um dos mais sagrados, mas que nem por isso deixamos de encontrar uma mistura de elementos religiosos e pagãos. Considerado “um dia santo tão grande, que diz que havia uma hora que nem os passarinham iam ao ninho” (Evangelista, 2004: 127), são comuns as histórias de pessoas que foram contra este preceito e esbarraram em qualquer inconveniente de origem transcendente. Como o homem que foi curar a vinha, com dois pulverizadores, e os dois se partiram, assim como um terceiro emprestado. Ou a mulher que fez uma fornada de pão em Quinta-feira de Ascensão e quando o cortou ele escorria sangue. Sangue também encontraram no serrote uns homens que foram serrar no Pinhal do Trinta, assim como uma mulher num lençol que estava a lavar ou uma outra que ficou com fios de sangue na parede que caiou em Quinta-feira da Ascensão.

Podemos assim ver que é religiosamente reprovável o trabalho neste dia, seja ele de índole doméstica ou profissional. Há o célebre caso do Doutor Figueiredo, que mandou os seus trabalhadores irem com os bois para o campo em dia de Quinta-feira da Ascensão, com um trágico desenlace. É um poema cantado, que podemos ouvir aqui e ler abaixo:

Quinta-feira de Ascensão
 Quinta-feira de Ascensão
É um dia muito guardado
Real Doutor Figueiredo
Mandou trabalhar o gado

Cale-se aí meu patrão
Que Deus o pode castigar
Ou tu fazes o que te eu mando
Ou senão boto-te a andar

Os criados coitadinhos
Foram p’ra Quinta lavrar
Chegou-se a malvada hora
De os bois se incendiar

Chegou-me agora a notícia
Trago os bois na Quinta a arder
Real Doutor Figueiredo
Voltou para trás e foi ver

Ele assim que lá chegou
A cavalo no seu carrão
Voltou-se p’ro povo e disse:
A todos peço perdão

Um homem que lá morreu
Metia horror e paixão
A cabeça separada
Não cabia no caixão

Ó que golpe, ó que golpe
Ó que golpe este tão forte
Não me livrou os meus bois
Também o não livrou da morte

Torradas novas torradas
Lá p’ros lados de Palhais
Real Doutor Figueiredo
Ficou diferente dos mais.

Contudo, existe também a parte pagã. “Saíamos pelos campos, rapazes e raparigas, íamos em ranchos, a cantar, apanhávamos a espiga, sentávamo-nos no chão, apanhámos túberas e pútegas. Brincávamos, fazíamos um baile, jogos. Arranjavam-se namorados.” (Evangelista, 2014: 160). As cantigas existentes relativas a este dia (aqui e aqui, reproduzidas abaixo) têm um cariz fortemente ligado a ritos sexuais, que mencionamos acima, e estão desprovidas da dimensão religiosa. O falo masculino é equiparado à espiga, e a envolvente da trama é sempre de cariz naturalista, sejam “os campos” ou “a seara”. Sobretudo a segunda cantiga apresentada remete para a iniciação sexual, enquanto que a primeira demonstra mais a continuação ou intensificação da atividade, acompanhado pela floração primaveril.

Por fim, e pela inferência do que aqui tratamos, podemos afirmar que o “Dia da Espiga” está ligado à dimensão pagã, seja a recolha da espiga, símbolo da floração, ou ligada aos ritos de iniciação sexual. Por outro lado, a designação “Dia da Ascensão” liga-se principalmente ao rito religioso.

Maria da Conceição,
 Maria da Conceição,
Um verdadeiro peixão,
Muito boa rapariga;
Pediu licença ao patrão,
Mas só á patroa não,
Para ir apanhar a espiga.

O patrão autorizou,
E quando esse dia chegou,
Era um gozo de bringel;
Vai a patroa à cozinha,
Dá com a rapariguinha,
Estava a aviar o farnel.

Assim que a patroa entrou,
À criada perguntou:
– O que fazes Conceição?
Estou o farnel a arranjar,
Para ir a espiga apanhar,
Pedi licença ao patrão.

– O patrão não manda em ti,
Tu hoje não sais daqui,
Quem manda sou eu agora;
Responde a moça a sorrir:
Pois se não me deixar ir
Desde já me vou embora.

A patroa mais serena,
Por ter da criada pena,
Porque ela não é má;
Diz-lhe então: – já está na hora
Rapariga vai-te embora,
Mas tem cautela por lá.

– Descanse minha senhora,
Saiu pela porta fora,
Animada a Conceição;
Nem a patroa julgava,
Que o farnel que ela arranjava,
Era também p’ro patrão.

Quando ela regressou,
A patroa perguntou:
– Ouve lá ó Conceição!
Nos campos por onde andaste,
Por acaso não encontraste,
Meu marido e teu patrão?

A rapariga corou,
E a patroa exclamou,
Ao ver-lhe o rosto corado:
– Já sei tudo rapariga
Foste apanhar a espiga,
Que eu também tenho apanhado!

– Quando eu era solteira,
Também nessa quinta-feira,
Fui à espiga muitas vezes;
Tanta espiga eu apanhei,
De uma vez até inchei,
Andei assim nove meses.


Quinta Feira da Espiga
Fui um dia passear
Quinta-feira de Ascensão
Com a minha rapariga
Cheguei ao meio da seara
Meti-lhe a espiga não mão
Cachopa não queria a espiga

Agarra a espiga cachopa
Agarra a espiga cachopa
Não estejas a desmaiar
Rapariga duma cana
Agarrou-a com tal gana
Já não a queria largar

Quando foi da primeira vez
Que eu lhe arranquei os três
E os olhos me revirou
Rica prima mete, mete
Rica prima mete, mete
Que ainda ao fundo não chegou

Em chegando o dia dela
Não queria a espiga
Mas depois leva com ela
Mas a cachopa ao princípio dava ais
Não queria a espiga
Mas depois já queria mais

Mas a cachopa ao princípio dava ais
Não queria a espiga
Mas depois já queria mais
Mas nesse dia era o grande dia dela
Não queria a espiga
Ó depois leva com ela.

Bibliografia:
EVANGELISTA, Manuel (2004). Lendas da Ribeira de Muge. S/l: Ed. Junta de Freguesia de Fazendas de Almeirim e Junta de Freguesia da Raposa.
EVANGELISTA, Manuel (2014). Jesuína Vitória: uma mulher da Ribeira de Muge. Paço dos Negros: Ed. de autor.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga (1984). Festividades Cíclicas em Portugal. S/l: Publicações D. Quixote.
SANTO, Moisés Espírito (1999). Comunidade Rural ao Norte do Tejo seguindo de Vinte Anos Depois. Lisboa: ed. Associação de Estudos Rurais da Universidade Nova de Lisboa.

Texto: Samuel Tomé

Recolha: Manuel Evangelista 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Os burros no Paço

Hoje que é o dia internacional do burro, porque não contar-lhes uma história, verdadeira, acontecida no Paço Real da Ribeira de Muge e a publicar em futuro livro de título: Burros da Ribeira de Muge.
Pena é continuar a acontecer hoje.

A burro morto..., ou os Burros no Paço

  Os monumentos por mais importantes que sejam e mesmo que de real paridela, nascem, vivem e precisam de carinho e bom trato para não tombarem sem honra nem glória. Tal qual como acontece com os jumentos.
O Paço da Ribeira de Muge é um destes casos. Situado em Paço dos Negros, que outrora fora terra de muitos burros, ergue-se num sítio singular e nasceu por real vontade, para o real desenfado, a coroar um tempo glorioso da História nacional. Quem diria que cinco séculos após, o que fora uma bela moradia de reis e príncipes, envolvida por um frondoso pomar, seria elevada a um monte de desprezadas ruínas e a um raso e feio chão que uns tantos teimosos burros charnequenhos continuam a acariciar, para enfado da real nobreza concelhia que, sem rei nem lei, lhe vai sentenciando a morte.
O Paço vinha decaindo desde o alvor do século 19, ao tempo dos Condes de Azambuja. Com a Casa arruinada: “ó Tomé, tu é que és rico, eu é que sou pobre...”, as filhas petulantes e gastadoras, só havia lugar à degradação. Com o arrendamento a Tomé, Magriço de parentela e sogro de Manuel Francisco Fidalgo, aforamento a este no início de 1900 e posterior venda em 1918, visão não houve, nem dinheiro, para evitar a ruína. No Paço, tombados eram agora alguns aposentos, e como “a burro morto...”, as altivas ruínas reais tombaram e rastejaram na lama das pocilgas; mantidos alguns aposentos para habitação, a capela foi celeiro, os edifícios da real montaria foram adega, palheiro, galinheiro, curral.
A ajudar à ruína, logo os rapinantes espalharam a fama dos ricos azulejos hispano-árabes deste Paço. Raro era o dia em que não aparecia um “estrangeiro” mercadejador de arte para desbaratar os restos do rico monumento régio que fora pequeno mas cheio de comodidades.
Todo o cobiçoso que ali chegava, quer fosse a título oficial ou particular, levava o que encontrava. Azulejos, moedas romanas e de outras eras históricas, urnas, lápides funerárias, potes de barro, pedras tumulares, as últimas imagens, alfaias e relíquias da capela, etc..
A própria plebe que, à jorna, cavava na horta real, gente que das redondezas ali vinha trabalhar, bastas moedas e outras peças encontrou tomando-lhes a posse. Não raro, ficaram na sua pertença, sem honra nem glória, até lhes perder o sítio.
Frazão de Vasconcelos, historiador pioneiro do Paço, revela-nos de que na década de 1920 uma colecção de azulejos hispano-árabes dali sacou para o Museu Arqueológico do Carmo.
Duas montanhas de escórias de ferro que remontavam quiçá a milénios, em 1953 resolveram o candente problema da Câmara Municipal de calçar a vil areia das estradas. E assim se escondeu, quem sabe se não um sítio da Idade do Ferro, a incitar a uma pesquisa na busca de um possível filão de ferro e outros metais. Certamente perdeu-se um sítio arqueológico valorizador do local em termos patrimoniais e de turismo no futuro.
Falecido Manuel Francisco Fidalgo, a mulher e os filhos ignorando o valor de todas aquelas peças, que diziam ser do tempo dos moiros, continuaram a deixar surripiá-las a todo o vendilhão que aparecia.
Com as partilhas outros interesses se levantam, o nosso passa a ser meu, e, agora, os herdeiros fartos de verem tanta gente subida a delapidar aquilo que era seu – um padre era um dos melhores fregueses de raridades do Paço –, o facto de ser um monumento da época histórica mais rica do país, a preservar, não comovia tão distintas figuras, ainda hoje neste tempo de políticos conhecedores e informados que bebem do fino e que batem no peito, não comove, entravam, roubavam, destruíam, transtornavam até o trabalho da Casa de moagem e agricultura, pelo que deram ordem de proibição de que dali fosse levada mais qualquer peça.
Mas, vendo bem…, a troco de uma qualquer benesse…
– Agora?! A burro morto... Ria-se a mulher, e a malta que ali trabalhava e que também se abichava com alguns achados. E a delapidação à sucapa continuou. Um banco de azulejos foi oferecido a um militar de patente para livrar da tropa um mancebo, neto do velho Manuel Francisco Fidalgo. Outros cadeirões de azulejos hispano-árabes perdeu-se-lhes o rasto. Uns tantos resta-lhes o esqueleto de argamassa a secar ao sol. Agora, só o “banco do Rei Preto”, outrora refúgio de namorados, ali jazia a degradar-se com uma panela mascarrada em cima.
O presidente da Câmara, Torrão Santos, sabendo da existência deste último banco, pertença de um neto, por herança, um belo dia eis o presidente na demanda do cadeirão de azulejaria, e pronto para levar o Banco do Rei Preto para enfeitar recém-criado museu da Casa do Povo.
António Batata, com outros jornaleiros das Fazendas, andava a limpar a vala do moinho. Traziam os burros a pastar e, o burro, já velho e doente, tombou no chão.
A patroa que, vinda do lado de baixo, junto à vala do moinho, ao ver a desgraça do burro, lhe grita: – Ó Antóino dá-lhe favas que o que ele tem é fraqueza!
Batata donde estava vê o senhor presidente a entrar no pátio e como corria entre os trabalhadores a proibição de se abotoarem com mais achados: – Ó patroa chegou o doutor Torrão. Vem aos azulejos!
– Dá-lhe favas, Antóino…
Ele insistia: – Ó patroa chegou mais um aos azulejos!
– Deixa-o vir! Agora tanto faz, já roubaram tudo… Olha dá-lhe favas – insistia, com pena de ver o burro a agonizar no chão.
– É, patroa, isto a burro morto, cevada ao rabo!

  
Nota: Este “Banco do Rei Preto” foi cedido à Câmara Municipal de Almeirim por Manuel Fidalgo, neto e herdeiro de Manuel Francisco Fidalgo.
- A única coisa que exigi foi que pusessem lá o meu nome de doador. (Não consta que o tivessem feito).
Regressou ao Paço no dia 1 de Julho de 2005, vindo do estaleiro da Câmara Municipal, onde fora encontrado na rua, após ter estado cerca de cinco décadas no museu da Casa do Povo.



quinta-feira, 1 de maio de 2014

1º de Maio, e as Maias, tradições da ribeira de Muge.

O mês de Maio, a fama de bom trabalhador e a preguiça.
O primeiro de Maio tinha uma grande tradição em Paço dos Negros: No primeiro dia do mês de Maio ninguém podia ficar na cama quando o sol nascesse. Para não deixar entrar o Maio, diziam. Alguns homens se encarregavam de acordar todos os outros e, iam de madrugada, de porta em porta, a fazer barulho, tropelias e diabruras.

As Maias, ainda que as mulheres não saibam explicar o porquê destes costumes enraizados, que não são mais que a celebração do amor pela Natureza, as raparigas solteiras logo pelo Entrudo, mal chegava a Primavera, enfeitavam-se de flores:
«As cachopas, no trabalho, na cabeça transportavam chapéus enfeitados de flores. As primeiras flores que anunciavam a Primavera. Flores de entrudo (mimosas), amarelas, lindas de veludo. Passa o Manuel Preto peregrinando no seu burro. Manuel Preto, viandante, tinha um coração de poeta. Elas sabiam-no e incitavam-no:
– Ó senhor Manel, quer ir e mais a gente?
– Ó meninas, aonde?
– Beijar o cu ao conde!
O coração sonhador de Manuel Preto, perante a graça das raparigas, num rasgado e esvoaçante elogio, revelava-se:

O macaco do entrudo
É muito amigo de brincar
Acolá naqueles chapéus
Todo o dia anda a brilhar!»

*Do livro Histórias da Ribeira de Muge.


Alguns chapéus que as raparigas (e mulheres casadas) usavam:





 Chapéu mais usado pelas mulheres casadas que adaptavam chapéus de homens, usados por seus familiares.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Vasco Graça Moura e a cultura popular

Morreu Vasco Graça Moura. Um grande vulto da Cultura nacional. Dele tenho uma grata recordação de um dia o ter na apresentação de um livro meu, em Almeirim. (RESIDIA NO CONCELHO). Por ser um homem de uma cultura profunda, não impediu que se "escangalhasse" a rir, com a sabedoria e a cultura das Mulheres da Ribeira de Muge. Descanse em paz.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Candonga no Moinho do Fidalgo - Paço dos Negros

Peça de teatro retratando os tempos heróicos da Segunda Grande Guerra, quando o povo faminto e descalço, atravessava a ribeira por dentro de água, e vinha de noite trocar o milho, o trigo, arroz, por farinha, ou arroz em casca por arroz já descascado. Só por isso este Moinho é um monumento a merecer o nosso respeito e consideração. Faz parte da nossa História.