A Ribeira de Muge fica situada na orla de um dos maiores desertos humanos de Portugal, a floresta de Entre-Muge-e-Sorraia. Esta região pode exibir ainda hoje uma cultura com traços característicos muito próprios, mormente a rude cultura dos pastores, cabreiros e dos negros que aqui habitaram. São estas especificidades que a Academia persegue, "subindo ao povo", como nos diz o grande Pedro Homem de Melo, recolhe, estuda e divulga.

domingo, 24 de março de 2013

Contos do rei Preto e outros contos do Paço

Um excerto do Prefácio do livro, que tenta desvendar a figura do mítico Rei Preto de Paço dos Negros.

Paço dos Negros é terra antiga. Terra com memória: Que outro paço coetâneo, Lisboa, Sintra, Évora, Almeirim, se não o Paço da Ribeira de Muge, de aspecto chão e vivências simples, daria primado aos negros, de modo a que estes tivessem trato e honra, e ousadia, de figurar em retrato de D. Manuel I, em refeição frugal, em ambiente rústico? (cf. Página 10); Que outro paço recebeu nome dos próprios negros que o ergueram e habitaram?; Que outro paço guardou em memória, durante cinco séculos, o hábito de D. Manuel de andar pelas cozinhas, o gosto que tinha pelos gatos?; Que outro paço guardou em memória um negro supersticioso que batia nos gatos e clamava por Jesus Cristo?; Que outro paço guardou em memória um negro autoritário, mau, refilão, sábio, anedótico, supersticioso, provocador, que, revelando a sua proveniência geo-histórica, o Benim, tanto marcou a terra, que até hoje tem dado titulatura aos rapazes da terra?; Que outro paço guardou em memória a menina branca que com um preto tem um diálogo, que em tudo coincide que as falas do negro em Gil Vicente? (cf. Página 35); Que outro paço tem um negro ao qual Gil Vicente dá o nome de Furunando, se não o histórico e documentado Fernando Frade, homem preto da capela de S. João Baptista do Paço da Ribeira de Muge?; Que outro paço guardou em memória um negro ao qual Gil Vicente dá voz como tendo vindo de livre vontade conhecer Portugal, se não o comprovado Fernão Frade, um baptizado do Benim, filho de rei, que andava na capela que, por ser livre, tivera a honra de trazer a rainha D. Catarina, mi bem lá de Tordesilha, e ao qual o rei recomenda que não esqueçam de pagar o soldo?; Que outro paço tem um negro ao qual Gil Vicente pede para lhe rezar o Padre-Nosso, a Salve-Rainha, se não um negro cujo metier é andar na capela e que recita: …Papa na Roma cansera…?;Que outro paço tem um negro do qual Gil Vicente extrai um Padre-nosso, uma Salve-rainha em latim, cujo exótico vocabulário nos leva a uma viagem pelo ambiente rústico do paço da Ribeira de Muge? (cf. Página 15); Que outro paço mantém vivo o espírito crítico e mordaz de Gil Vicente; Que outro paço teve um “Rei”, preto, que marcou para sempre a idiossincrasia do povo, ao ponto de quando alguém queria meter medo a uma criança, dizia: “está lá o rei preto e agarra-te”, quando pretendia acabar um conto, declarava: “…não me lembro é o outro”; ao que o interlocutor respondia: “É o Rei Preto…”. (cf. Página 37).

capa rei preto final

quarta-feira, 13 de março de 2013

Folclore e Folclorice

Com a devida vénia a Mafalda Lopes da Costa, “Lugares Comuns” da Antena 1, do dia 11 De Março:

(clique para ouvir)

http://rsspod.rtp.pt/podcasts/at1/1303/2378574_130855-1303092358.mp3

Nesta rubrica vemos quão deformado está o conceito de Folclore. Palavra que nasceu para dar toda a dignidade à cultura popular, está hoje em Portugal, transformada em algo “excêntrico, berrante, para dar nas vistas”, algo sem valor, digo eu.

Também esta semana, na rádio, um estudioso da cultura do povo, referia-se à folclorice dos nossos ranchos, como “a tragédia que se abateu sobre a cultura popular”. E diz bem, uma verdadeira tragédia, que tanto tem prejudicado a nossa genuína cultura popular. Referia-se o estudioso, à estridência musical, e à deformação dos colegiais trajes e até das danças rurais “circenses”, com culottes ou sem culottes, inventados pelo salazarismo. Não há pachorra.

Anos 70.

anos 70 recitas d. alda

domingo, 10 de março de 2013

Fernando Frade, o rei Preto?

Será que o Rei Preto é apenas uma Lenda de Paço dos Negros da ribeira de Muge?

CC, 2, mac 163, fol.23

Pedro Matela cavaleiro da Casa d’el-rei nosso senhor e seu contador na comarca dos escravos desta mui nobre e sempre leal vila de Santarém e da vila de Abrantes, corregedor perpétuo da vila de Almeirim, vos mando a vós Simão Lopes, recebedor das sisas da távola de Marvila desta dita vila de Santarém, que compres cinco alqueires de azeite e os entregares a Fernando Frade, homem preto da Ribeira de Muge, para andarem na capela dos ditos Paços da dita Ribeira, que por ordenança o dito senhor manda que lhe sejam entregues...

Assinatura de Fernão Frade - o Rei Preto

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Onde está o Paço Real da Ribeira de Muge?–Paço dos Negros

Numa altura em que se tenta reduzir o Paço Real da Ribeira de Muge ao seu Pórtico, várias são as provas da sua existência, dimensão e arquitectura.

Todos os dias as provas da sua existência e os pilares do seu estudo e possível reconstrução são vandalizados e destruídos. Com incrível indiferença dos habitantes locais e conivência das entidades oficiais!

Além de considerar esta postura de uma pobreza sócio-cultural inadmissível nos dias de hoje,  começo a desacreditar na necessária suscitação do necessário interesse, principalmente por parte dos jovens, no seu reconhecimento e valorização.

Que se vão publicando as fotos e enaltecendo o trabalho do Dr. Manuel Evangelista.


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Portal. Um dos muitos existentes dentro do Pátio, cuja disposição localizada, assimetria e volumetria, indiciam ser de construção preexistente à edificação do Paço.

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Lajes em tijoleira. Contíguo ao Pátio do Paço Real.

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Pórtico do Paço Real da Ribeira de Muge. Construído nos anos de 1511-14: T. Tombo, CC, P1, maç 10, fol. 26; CC, P2, maç 27, fol.125.

Em destaque as armas reais, de coroa aberta, ladeadas pela esfera armilar do rei fundador, D. Manuel I, o Venturoso, e seis dos seus vinte merlões originais.

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Capela do Paço. Capela quinhentista, esteve aberta ao culto ao serviço das populações, durante cerca de quatro séculos. De entre muitas outras referências:

Em 1658 o Prior e Religiosos do Convento de NªSª da Serra recebem por alvará, Registo Geral de Mercês, Vários Reis, liv. 1, fl. 192v., 25$000 réis por ano para comprar um macho, para nele irem os religiosos do Mosteiro à Capela de Paços de Muja dizer as missas Domingos e dias Santos.

Quarenta anos depois, “Ordenado da Capela dos Passos”, de 1689 a 1699, que ao mesmo mosteiro Sua Majestade nos manda dar para o macho em que eimos aos Passos, dois moios de sevada todos os anos, nas Jugadas de Santarém.

As receitas provenientes das mesmas. No mesmo período, 1689 a 1699, um documento do Convento de NªSª da Serra declara que “No almoxarifado de Santarém, temos seis mil réis pelas missas da Capela dos Passos”.

Mesmo após a extinção do almoxarifado, e a propriedade ter sido doada, em 1790, a D. António Luís de Meneses, Marquês de Tancos e Conde da Atalaia, vemos em documentos do Mosteiro de Nossa Senhora da Serra:

Hum brinde para o Almoxarife de Almeirim passar as certidões da Capela dos Paços, $440 réis. Em Março de 1826.

Despesa de uma mulher para varrer a Capela dos Passos, $480 réis, em Junho de 1828.

Despesa para o novo selo de testação, que pagou o almoxarife da Capela dos Paços, $060 réis, em Maio de 1828.

Serviu de celeiro por todo o século XX, período durante o qual esteve a porta entaipada, tendo sido aberta uma outra nas traseiras, onde acessa ao moinho.

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Trecho do Muro da Cerca do Pomar Real, lado Norte, nas traseiras do complexo.

Foi o Pomar desde sempre parte integrante do complexo do Paço da ribeira de Muge.

Em todos os alvarás de nomeação dos almoxarifes do Paço da Ribeira de Muge (14), com variações no ordenado anual, duas coisas mantêm em comum, ao longo de quase três séculos: dois moios de cevada, para um cavalo que hão-de ter para guardar a Coutada, e a verba para o ordenado de dois homens que hão-de ter continuadamente para cuidar do pomar.

Vemos em Ch. D. João IV, liv. 17, fol. 38, aquando da nomeação do almoxarife João Rodel Figueira, “haverá 24 mil réis para hum (sic) homem que há-de sempre andar no Pomar dos ditos paços…”

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Antigo aqueduto sobre uma vala, de acesso às piscinas, moinho actual. (Segundo testemunhos, este moinho foi construído no início do século XX, sobre as ruínas de antigas piscinas.)

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Trecho do Muro da Cerca do Pomar Real, lado Oeste. Encontra-se soterrado sob as casas e barracas.

Vemos em Ch. D. Pedro II, liv. 9, fol. 258, aquando da nomeação do almoxarife Paulo Soares da Mota (I) “… e 24 mil réis para dois homens que hão-de andar contínuos trabalhando nos pomares dos ditos passos…”

Dentro da Cerca foram encontrados, nos anos 50 do século XX, várias moedas e cerâmicas romanas, bem com de outras cronologias.

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Moinho dos Frades (interior). Construído no início do século XX, cujo nome “Moinho dos Frades” herdou de um outro, assim conhecido pelo facto de os frades ali virem rezar missa.

(Esse outro, que existia cerca de 100 metros (cem) mais abaixo, está documentado como sendo de Francisco Palha, contador-mor de Santarém, que “abriu mão” das suas três escrituras de três assentos de moinhos e terrenos, em 1511, para que o rei pudesse ali construir o Paço, CC, P1, maç 10, nº 26.

Foi em 1546 doado ao almoxarife Estêvão Peixoto, Ch. D. Seb. e D. Henrique, liv. 24, fol. 191; Em 1719 foi comprado por António Roiz, morador nos Gagos, cujas confrontações não deixam margem para dúvidas: Lado Nascente, com a Madre de Água; lado Norte, com o Muro do Orta dos Passos de Sua Majestade que Deus guarde; do Poente, com a estrada que vai para a vila de Mugem; do lado Sul, com o Porto das Carretas e com terras do Moinho do Pinheiro…, ch. D. João V, liv. 63.

Trabalhou ainda no primeiro terço do século XX. Ainda há poucos anos podiam ver-se algumas paredes.)

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Trecho de Tanque Quinhentista. Situado no vértice do Muro da Cerca do Pomar Real, lados Oeste/Sul. Dois outros tanques do sistema de rega do Pomar existiam, junto ao muro, no lado Oeste.

Em Frazão de Vasconcelos, 1926, vemos: Trechos de um pequeno aqueduto sobre arcaria mostram a antiga distribuição das águas para as hortas e pomar, que era rico de excelentes frutos.

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Trecho do Muro do Pátio do Paço Real, lado Sul. Confina com o lado Norte do Pomar Real.

Vemos em Ch. D. João V, liv. 41, fol. 308, aquando da nomeação do almoxarife João de Seixas Henriques, “ …e 24 mil réis de dois homens que hão-de andar contínuos trabalhando no pomar dos ditos passos…”

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Trecho do Muro da Cerca do Pomar Real, lado Sul, junto à estrada do Arneiro da Volta.

Vemos em Ch. D. João IV, liv. 28, fol. 103, aquando da nomeação do almoxarife Francisco de Almeida “…e os 24 mil réis em dinheiro para os homens que hão-de servir de continuo no benefício do pomar…”

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Paredão. Ruína dentro do terreno (horta) de Manuel Maria Cipriano. Tem mais de 20 metros de comprimento, sendo perpendicular com a da foto nº 13.

Situa-se junto ao Muro da Cerca do Pomar Real, lado Nascente.

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Ruína de Ferraria? Situa-se junto à Cerca do Pomar Real, lado Nascente, do lado exterior, dentro do terreno (horta) de Manuel Maria Cipriano. Avança para leste, por dentro do aluvião (terra de arroz).

Vemos em Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, Tomo XXVIII: 251, publicação de 1947, que se refere a deux monticules constitués par des scories de fondition, probablement contemporains du chateau.

Escórias estas, que existiram junto a este local, até 1953.

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Antigo aqueduto, junto ao Paço, sobre uma vala. Dá acesso ao actual moinho, terras de cultura de arroz e à própria ribeira de Muge.

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Panorâmica do Muro da Cerca do Pomar Real, lado Sul, paralelo à estrada do Arneiro da Volta.

Vemos em Ch. D. José I, liv. 23, fol. 187, aquando da nomeação do almoxarife de Paulo Soares da Mota (2) “…haverá 40 mil réis em dinheiro, com a obrigação de pagar à sua custa a dois hortelões (24 mil), que são necessários para a horta, que trará sempre cultivada, com as suas ruas limpas…”

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Paredão. Continuação para Norte, no sentido do Paço, do Paredão referido em 12. Situa-se junto ao Muro da Cerca do Pomar Real, lado Nascente.

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Pórtico de acesso aos Corredores. Consistiam estes “corredores” em um conjunto de arcadas, forradas a azulejos, com um conjunto de bancos também em azulejos, que ia desde o Paço, pelo lado Nascente da Cerca do Pomar Real, até próximo do moinho referenciado em 8.

Eram “os Corredores”, lugar de recreio e folguedos.

(Deste moinho, saiu para se casar na Capela do Paço, no dia 29 de Janeiro de 1729, para o que teve uma autorização especial do arcebispado, e por estes belíssimos “Corredores”passou, Josefa Maria, a filha do moleiro. Nesta altura, os actos oficiais, casamentos, baptizados e funerais, eram já efectuados na igreja paroquial da recém criada freguesia de Raposa.)

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Ruína de Banco de azulejos hispano-árabe. Um dos muitos que se dispunham, alinhados, por toda a ala Nascente da Cerca do Pomar Real, chamada “Os Corredores”. Podem ainda ver-se, in loco, restos de alguns destes antigos bancos de azulejos.

Frazão de Vasconcelos op. cit.: Não vimos lá pedras de lavores artísticos e os trabalhos de alvenaria nada indicam de notável, alterado como está, o edifício por modernas reconstruções. Os azulejos quinhentistas que cobriam as paredes foram arrancados e dos milheiros deles que na obra se empregaram de 1512 a 1514 poucos existem já. Um banco de alvenaria conserva ainda o seu primitivo aspecto, forrado de azulejos policromos hispano-árabes. Inteiros, raros haverá mais. Alguns trouxemos para o Museu do Carmo, por oferta do actual proprietário do Paço, sr. Manuel Francisco Fidalgo.

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Paço dos Negros da Ribeira de Muge, Romano?

A 1 km do Paço. Ponte Romana? www.ipa.min-cultura.pt/: É uma estrutura que corresponderá ao alicerce de uma ponte localizada sobre a Ribeira de Muge, e que segundo a bibliografia especializada se localiza no itinerário da via romana Scalabis/Évora, sendo pois provável que esta estrutura esteja relacionada com a existência de uma ponte de cronologia romana. Situa-se na ribeira de Muge, cerca de 1 km a sul do Paço.

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Nas Ferrarias, a 5 km a sul do Paço da Ribeira de Muge, à beira da estrada e a cerca e 100 m da ribeira de Muge, além de Estação ao Ar Livre, existe um Cabeço de Ferro, cuja estação denominada Monte do Ferro, foi identificada e classificada quando se abria a estrada, em 1953.

Recolhidos materiais de vários períodos, nomeadamente Mesolítico, Idade do Ferro, Romano e Medieval. www.ipa.min-cultura.pt/.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Drepanociptose – (Ciência pouco científica)

Erros como os que vamos verificar, porque sistemáticos, têm vindo a contribuir para a ignorância sobre o Paço Real da Ribeira de Muge. E a ignorância é a mãe de todas as destruições deste e doutros paços, na qual os políticos, e outros, desde sempre se têm apoiado.

Encontrámos uma uma brochura elaborada por equipa do Hospital de Santarém, sem data, como conclusão de um estudo sobre a drepanociptose, o qual contém um rol de incorrecções relativamente ao o Paço dos Negros da Ribeira de Muge. Porque o documento parece empenhado em afirmar tudo quanto é contrário à realidade histórica, passemos a analisar o que o mesmo diz. Logo a abrir, em Notícia Histórica,

citamos a página 7:

«A presença de raça negra nos concelhos de Almeirim e Coruche não pode fixar-se antes do século XIX, ao contrário do que ainda defende uma tradição sem fundamento.

Nos períodos em que a Corte viveu em Almeirim, correspondendo aos anos 1500 a 1578, admite-se que alguns escravos a tivessem seguido para o desporto de caça que se praticava na região, mas os casos a apontar são esporádicos.

Por tal motivo, não se confirma a tradição de que houve no sítio de Paço dos Negros, uma fixação africana de onde derivou o topónimo de Paço dos Negros. Esse local da freguesia da Raposa e concelho de Almeirim nunca é citado nos registos paroquiais, nem em relatos de viagens do tempo, como sendo o de negros ali residentes.

Existe ali um palácio sem dúvida senhorial, pelo brasão do século XVI que encima a portaria e que presumimos ter sido a residência de caça do fidalgo Fernão Soares, pagem do livro de D. João III, falecido em 1544 e que jaz no vizinho convento de Nossa Senhora da Serra.

Como Paço dos Negros, essa moradia hoje desprovida do traço original, só no século XIX passou a ser conhecida.

No século XIX, sim, viveram ali grupos de africanos que os governos da Regeneração fizeram vir para a metrópole afim de os adaptar a vários tipos de vida agrícola.»

Na página 12: «Em 1890 chegaram centenas de pretos de Angola a Lisboa, destinados a trabalhos agrícolas. Foram distribuídos por várias regiões entre elas a de Santarém…muitos deles foram levados certamente para Ameirm e Coruche – onde já havia outros desde 1850-para a cultura do arroz. Foram eles os ascendentes de muitos habitantes que hoje vivem nas Fazendas de Almeirim, Raposa, Lamarosa, e localidades próximas. Admitido gerações de 20 a 25 anos, temos a concluir que essas populações se radicam no Ribatejo há 130-110 anos, o que corresponde a 4 ou 5 gerações.»

Na página 23: «Embora Paço dos Negros – nome de povoação – estivesse na origem da escolha da área a estudar e dados históricos nos pudessem confirmar a existência de negros nesta mesma região, foi-nos negado o conhecimento de antecedentes de raça negra em todos as crianças com traço drepanocitário.»

Com todo o imenso respeito que possamos ter pelos nomes que constam da Ficha Técnica, não podemos deixar de repor a verdade histórica neste caso, ao qual, se nos aspectos técnicos e da temática da “doença” em estudo não temos nada a dizer, embora pensemos que não será a mesma coisa terem as populações estudadas 500 anos de contacto com gentes africanas, e 100 anos, como são as premissas em que se baseia o referido estudo e nos querem fazer crer:

1 – A presença de populações africanas não é uma tradição sem fundamento. Temos acesso a largas dezenas de documentos que nos dizem quando vieram (logo a partir de 1511), quem os pediu, quem os enviou, quantos eram, a quem pertenciam, o que recebiam para seu mantimento, etc.

2 - Este Paço é mencionado em larguíssimas dezenas de documentos das diversas chancelarias reais, sempre referido como “os meus Paços da Ribeira de Muge”, a partir de 1685 “os meus Paços dos Negros da Ribeira de Muge”. É o caso da nomeação real dos 14 almoxarifes do Paço.

O próprio documento, de 1511, 22 de Abril, em que o contador mor de Santarém dá conta ao rei D. Manuel do estado dos terrenos, seus donos e escrituras, e do que é necessário para o “aviamento das obras”. nesta, pede logo ao rei que lhe mande uma dúzia de escravos. Escravos que recebeu. Em 1529 eram já 30.

3 – Não se trata de uma mera casa senhorial. D. Manuel I, D. Sebastião, D. Catarina, aqui gostavam de se recrear. O caso do pagem Fernão Soares, com moradia neste paço, esse sim, é pura especulação, pois não nos aparece referenciado em nenhum documento referente a este paço.

4 - A cartografia, que já no século XVII referencia o paço como o “Paço da Serra”, “Palácios”, e o “Vale de Negros” nesta região.

5 - O facto de não aparecer mencionado nos registos Paroquiais, dever-se-á a erros de compreensão do próprio questionário, pelo pároco de Raposa, como se verifica pela forma desordenada, repetitiva, incompleta e ilógica da ordenação das respostas, que tem como consequência ser considerado, em 1758, pelo visitador do patriarcado: «João Rodrigues Delgado, não é mal procedido, pouco letrado, e não é muito vigilante em ser perfeito pároco…», e os negros já estarem assimilados, e ou dispersos pelos casais em redor, como o prova o funeral de um escravo, Pedro Tinoco, na igreja de Raposa, em 1719, que morava no moinho da Várzea Redonda.

6 - A afirmação de que o paço só passou a ser conhecido a partir do século XIX, trata-se de uma outra ideia preconcebida, pois foi precisamente a partir do ano de 1834, data da extinção dos conventos, com o fim da missão dos frades dominicanos de Nossa Senhora da Serra de ao Paço dos Negros virem dizer missa, de que temos registos até esta data, até ao limiar de 1900, com a venda do paço, estando o Paço na posse da Casa de Atalaia/Tancos, e após esta venda, cerca de 1880-1919, e sua ruína, que a história deste Paço e lugar, é mais apagada e nebulosa.

A concluir, devo dizer que tenho interrogado pessoas que nasceram no início do século XX, mesmo finais do século XIX, (minha mãe nasceu em 1913, meu avô nasceu em 1864, convivi com ele 12 anos), pessoas que há 20 anos interroguei, e na altura tinham 100 anos (por esse motivo as interroguei), e ninguém tem memória da existência de pessoas negras, mulatas ou pardas, na região. O que não aconteceria se porventura tivessem vindo em 1890.

Sinteticamente embora, espero que tenha ficado claro este erro. Das premissas e das conclusões do documento não nos pronunciamos. Só esperamos que a discrepância temporal, não obste a considerar válido o resultado dos estudos. Um problema deles técnicos de saúde.