A Ribeira de Muge fica situada na orla de um dos maiores desertos humanos de Portugal, a floresta de Entre-Muge-e-Sorraia. Esta região pode exibir ainda hoje uma cultura com traços característicos muito próprios, mormente a rude cultura dos pastores, cabreiros e dos negros que aqui habitaram. São estas especificidades que a Academia persegue, "subindo ao povo", como nos diz o grande Pedro Homem de Melo, recolhe, estuda e divulga.

domingo, 1 de novembro de 2009

Um conto de Entre-Muge-e-Sorraia

Um conto que me foi contado por uma velha mulher de quase 90 anos, que relembra as narrativas que os cabreiros, caseiros, boieiros,  porqueiros, desta região "desértica" de Entre-Muge-e-Sorraia, quando outrora, atrás do gado, no corte do mato, ou a segurar o rabo do charrueco, inventavam, para à noite se deliciarem, contando uns aos outros, a ver esse que fazia melhor figura.


Vista do Vale da Ribeira da Calha do Grou

O Borrifinho e o Borrifalho


Era uma vez um regimento de soldados do rei que foram fazer um acampamento. Depois uma noite saíram para o mato e três deles perderam-se, coitadinhos. Andavam perdidos na floresta, quando ao longe viram uma luzinha, ao longe, lá muito longe.
– Temos que ir até àquela luz, para ver se alguém dá a salvação à gente – resolveram.
Chegaram a essa casa e morava lá uma velhota. Bateram à porta. A velha estava ao lume a descascar alhos. Abriu o postigo e espreitou.
– Olhe lá minha senhora, você não dá abrigo à gente. Andamos perdidos. Não sabemos onde estamos.
– Eu tenho medo vocês não me façam mal, não lhes posso dar cómodo.
– Não fazemos minha senhora. Bem vê que somos soldados do rei. A gente vem cheiozinhos de frio. Andamos perdidos. Não sabemos onde estamos, o que é que vai ser de nós, que o rei vai castigar-nos.
A velha teve pena deles, deixou-os entrar.
– Então agora a senhora não arranja alguma coisa para dar de comer à gente. Vimos cheios de fome.
– Só se for uma açordinha. Tenho pão na gaveta, faço-lhes uma açordinha – decidiu a velha.
A velha chega-se ao pé deles, com uma grande malga cheia de pão migado: – Atão como é que vocês querem o tempero, querem borrifinho ou querem borrifalho?
Eles nunca tal tinham ouvido: – O que é que será borrifinho, e o que é que será borrifalho? – interrogavam-se os magalas, a olharem uns para os outros.
– Olhem, borrifinho é assim…
E a velha pôs um gole de azeite na boca e soprava, brummmmm, a fazer um borrifinho.
– Borrifalho é o alho migado com os dentes –. E como tinha ali os alhos à mão fez o jeito de fazer logo um borrifalho.
– Oh minha senhora a gente quer só borrifinho – acabaram por decidir, enojados.
A velha que tinha acabado de descascar os alhos, migou os alhos por cima do pão, sem borrifalho, vai à almotolia encheu a boca de azeite, e vai assim com a boca por cima da açorda: brrruuummm!, a fazer o borrifinho.
– Eu não quero azeite da boca da velha. Não sou capaz de comer – disse logo o primeiro.
– Pois eu como. – Disse um dos outros dois.
– Eu também. Quero lá saber da boca da velha. Com a traça com que eu venho.
Dois comeram a açorda e um não.
Sabem o que é que aconteceu a este? Lá a uma certa hora porque não tinha comido nada, estava esbarrido com fome, e disse para os outros.
– Eu vou mas é procurar alguma coisa que se coma, que eu não aguento tanta fome.
Tacteando às escuras, meteu a mão numa gaveta; lá dentro encontrou pão e uma valente talhada de toicinho que lhe soube a pouco.
De noite a velha levantou-se, desinsofrida, e vai à gaveta à procura do toicinho.
– Qual de vocês é que comeu o meu rico toicinho? – interrogava a velha toda alvoroçada. Dei-lhes guarida, até lhes fiz uma açordinha. Ai tanta falta que me faz o meu rico toicinho! Era o toicinho com que eu untava as almorródeas! Ando cheiazinha de almorródeas.
Dizem então os soldados para aquele que não tinha comido:
– Muito bem feita!
Da velha não quiseste o borrifinho,
Pois agora comeste-lhe o toicinho!