A Ribeira de Muge fica situada na orla de um dos maiores desertos humanos de Portugal, a floresta de Entre-Muge-e-Sorraia. Esta região pode exibir ainda hoje uma cultura com traços característicos muito próprios, mormente a rude cultura dos pastores, cabreiros e dos negros que aqui habitaram. São estas especificidades que a Academia persegue, "subindo ao povo", como nos diz o grande Pedro Homem de Melo, recolhe, estuda e divulga.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Nossa Senhora do Rosário nos assentos paroquiais de Santo António da Raposa na primeira metade do séc. XVIII

Na Paróquia de Santo António da Raposa, cujo primeiro livro de assentos paroquiais media o período de 1706-1741, aparece como madrinha de batismo quatro vezes Nossa Senhora do Rosário (num total de 289 batismos registados). Contudo, antes de tentarmos perceber esta devoção das gentes que aqui viviam, há que tentar perceber melhor o culto mariano no geral e a Nossa Senhora do Rosário em particular naquela época.


Nossa Senhora do Rosário – Imagem na Igreja de S. Domingos, Lisboa
Devemos ter presente que o Convento da Serra, que existiu na Paróquia de Santo António da Raposa, era habitado por frades dominicanos (ver aqui)

Tendo como ponto de partida um artigo de Carlos Alberto Ferreira Almeida, intitulado “O Culto a Nossa Senhora, no Porto, na época moderna”, podemos melhor perceber a devoção mariana neste hiato temporal. Com efeito, o culto da Mãe de Cristo acentuou-se a partir do final da Idade Média, deixando a designação de “Santa Maria” para “Nossa Senhora”, assumindo nesta última forma as mais variadas causas, conforme as invocações, substituindo os santos patronos dessa mesma causa (ex: Nossa Senhora do Leite substitui S. Mamede para a amamentação, Nossa Senhora da Saúde substitui S. Roque e S. Sebastião para a peste, Nossa Senhora da Ajuda substitui S. Pedro para as comunidades piscatórias, Nossa Senhora da Vitória substitui S. Jorge para as causas militares). Contudo, num pequeno espaço podia existir mais que um culto a Nossa Senhora, com invocações diferentes. Por exemplo, na Paróquia de Campanhã, segundo as Informações Paroquiais de 1758, existiam seis capelas dedicadas a Nossa Senhora, sob a invocação de Nossa Senhora da Graça, da Vida, do Rosário, da Conceição, do Pilar e dos Anjos.

O culto a Nossa Senhora do Rosário, do Carmo, da Silva e da Boa-Morte vêm substituir o patronato de S. Miguel na defesa-guarda dos túmulos e almas. Crê-se que Nossa Senhora assiste aos julgamentos dos seus devotos, intercedendo pelos mesmos, colocando a sua touca ou rosários no prato da balança dos méritos. É durante a época moderna que se origina o hábito dos mortos levarem um rosário para a sepultura e que este passe a ser recitado nos velórios. Não devemos esquecer que, além do apadrinhamento de Nossa Senhora do Rosário patente nos registos paroquiais de Santo António da Raposa, foi ainda encontrada no espaço do paço, segundo Evangelista (2015) uma medalha de Nossa Senhora da Boa Morte, com a data de 1732 gravada, o que atesta a devoção neste local a Nossa Senhora sob a causa da morte e julgamento no além. 

Medalha de Nossa Senhora da Boa Morte, encontrada no Paço Real da Ribeira de Muge.
Foto de Manuel Evangelista.

Segundo Almeida (1979), torna-se prática ao longo dos séculos XVII e XVIII, na configuração das igrejas, serem dados os dois altares laterais ao altar-mor (os com mais destaque na igreja) a Cristo Cruxificado (por norma à direita) e a Nossa Senhora, sendo mais comum nas invocações de Nossa Senhora Dolorosa e Nossa Senhora do Rosário. Na Igreja Paroquial de Santo António da Raposa, e apesar da sua diminuta dimensão, podemos constatar que apesar de não existirem altares laterais, há duas bases para santos que ladeiam o altar principal. Enquanto que Cristo Cruxificado está, neste caso, no altar principal, com o sacrário. No lado encontramos Santo António (Padroeiro da igreja e da Paróquia) e no lado esquerdo Nossa Senhora de Fátima. Teria aqui estado, antes dos fenómenos da Cova da Iria, Nossa Senhora do Rosário?


Altar Principal da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa.
Vê-se, a ladear o mesmo, as imagens de Nossa Senhora de Fátima e de Santo António.

Como já referimos, os batismos apadrinhados por Nossa Senhora do Rosário são no total quatro. O primeiro data de 11 de março de 1728, de um menino chamado Manuel, filho de Lúcia Maria (moça solteira), moradora no Casal do Moinho de Vale Flores (já na Paróquia do Espírito Santo de Vale Cavalos).

A 19 de novembro de 1732 volta a ser invocada Nossa Senhora do Rosário para apadrinhar José, o segundo e último filho de Francisco Oliveira e Domingas Dias, moradores em Pero Pez. Esta criança morrerá menos de um ano depois a 30 de setembro de 1733. Em 2 de fevereiro de 1733, Nossa Senhora do Rosário é madrinha de batismo de Anastácio, também segundo filho (em seis) de José Gonçalves e Josefa Maria, moradores no Passo dos Negros. Para além de serem estas duas crianças segundos filhos (ou pelo menos os segundos de que há assento paroquial), foi ainda mencionado no seu registo que o apadrinhamento de Nossa Senhora do Rosário de deve à devoção dos pais.

O quarto e último assento, datado de 5 de fevereiro de 1737, menciona que Nossa Senhora do Rosário apadrinha o batismo de João, terceiro filho (de quatro) de Inácio Santiago e Josefa Maria, moradores nos Paços dos Negros. Esta criança irá morrer a 8 de agosto do mesmo ano, cinco meses após o batismo.

Deixando de parte agora o caminho dos factos, poderemos entrar em algumas conjeturas e levantar interrogações pertinentes, a nosso ver, para o culto de Nossa Senhora do Rosário pelas gentes da Ribeira de Muge. Assim:

- Apesar da devoção, seria este apadrinhamento “santo” um meio de procurar o auxílio divino para a criança? Com efeito duas das crianças morrem pouco tempo depois do batismo. Estariam já aquando do batismo doentes e prever-se uma morte no médio prazo? Seriam os conhecimentos médicos suficientes já para prolongar por meses a vida de um recém-nascido? Apesar não existir registos de óbitos dos outros dois, podemos considerar que poderiam melhor da maleita e escapar, ou o seu sepultamento ter sido noutra paróquia.

- Por outro lado, a invocação de Nossa Senhora do Rosário como madrinha de batismo pode ser o meio de obter graças divinas para a criança que está a ser limpa do pecado original, quando a sua condição de nascimento não é a mais favorável? Com efeito, a primeira criança foi concebida fora do casamento, enquanto que as restantes três não são primogénitos (tanto o filho de Francisco Oliveira como o de José Gonçalves tinham uma irmã mais velha, o de Inácio Santiago tinha uma irmã e um irmão).

- Porquê Nossa Senhora do Rosário? Além dos motivos aludidos anteriormente, da sua grande devoção nesta época, como também já foi mencionado atrás, existia um convento na paróquia, o Convento Dominicano de Nossa Senhora da Serra. Encontramos em Lisboa, precisamente na Igreja de S. Domingos (integrante do antigo convento dominicano da capital) uma imagem da Virgem do Rosário. Sabemos que na Igreja de Santo António da Raposa existiu uma imagem de Nossa Senhora do Rosário (roubada aquando de um assalto em fevereiro de 2002). Terá ela vindo no Convento da Serra? Terão os frades influenciado este culto nas populações?

Imagem de Nossa Senhora do Rosário na Igreja de Santo António da Raposa
Fotografia recolhida por Manuel Evangelista

- Por fim, Almeida (1979), afirma que na Igreja da Foz do Douro (Porto), havia dois altares à Virgem do Rosário, cada um com a sua própria confraria. A celebração de uma festividade era a 15 de agosto, e a segunda no primeiro domingo de outubro. Esta última, segundo as Informações Paroquiais, era a festividade “dos pretos”. Seria este um culto do povo negro, que bem sabemos ter aqui uma forte presença.
  
Bibliografia e outras fontes:
(1706-1741). Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados – Raposa (Sto. António).
ALMEIDA, Calos Alberto Ferreira (1979). “O Culto a Nossa Senhora, no Porto, na época moderna”, Revista de História, vol. 2. Porto: Centro de História da Universidade do Porto.

EVANGELISTA, Manuel (2015). A Capela de S. João Baptista. S/l: ed. de autor. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O senso comum como ciência, ou puro embuste ao mais alto nível?

Muito se tem discutido sobre a presença de marcos miliários junto a Alpiarça. Outros dizem entre Almeirim e Alpiarça. Os mais ousados decerto bem informados, decerto bebem do fino, talvez escondendo algo ao mundo científico, avançam com a frase: “recentemente identificados”). já que foram descobertos recentemente, eu gostaria de ver os ditos. Será isto senso comum como ciência, ou puro embuste ao mais alto nível?

Conferir o doc. abaixo:
…os marcos miliários recentemente identificados, pertencentes à via romana que ligava Lisboa a Mérida…
Brasão de Almeirim
Brasão de Almeirim
[GEOGRAFIA  E LOCALIZAÇÃO
Almeirim é uma cidade portuguesa pertencente ao Distrito de Santarém, com cerca de 10 520 habitantes.
Desde 2002 que está integrada na região estatística (NUTS II) do Alentejo e na sub-região estatística (NUTS III) da Lezíria do Tejo; continua, no entanto, a fazer parte da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, que manteve a designação da antiga NUTS II com o mesmo nome.
Pertencia ainda à antiga província do Ribatejo, hoje porém sem qualquer significado político-administrativo, mas constante nos discursos de auto e hetero-identificação.
É sede de um município com 221,80 km² de área e 22 766 habitantes (2006), subdividido em 4 freguesias.
O município é limitado a norte pelo município de Alpiarça, a leste e nordeste pela Chamusca, a sul por Coruche e Salvaterra de Magos, a oeste pelo Cartaxo e a noroeste por Santarém.]

Eis o que nos diz André de Resende no seu Livro “Antiguidades da Lusitânia”, O LIVRO ONDE TODOS DIZEM BEBER. Tradução de Raul M. Rosado Fernandes:
…Por outro lado, o caminho a partir de Santarém, sobranceiro ao ópido de Almeirim, era conduzido pelas nascentes do rio Alpiarça. [no original, per Alpiarsae fluvii initia ducebatur]. Em qualquer lado se vêm grosseiros fragmentos de colunas, das quais nada havia a transcrever.

Depois, apesar de ter encontrado no caminho quatro colunas caídas, apenas pude ler numa delas o seguinte:
«O imperador César Gaio Júlio vero, nobre general vencedor cinco vezes, com o poder tribunício, cônsul, procônsul, Pai da Pátria…».

Mil passos depois estão tombadas três colunas:
«O imperador César, divino Trajano Augusto, Germânico, Pontífice Máximo, duas vezes com o poder tribunício, restaurou onze».
A segunda estava partida e apenas tinha no fim estas letras:
«Restaurador da cidade de Roma».
[Na terceira]:
«Ao Imperador César Cláudio Tácito, Pio, Feliz, Invicto, Augusto, Máximo, no segundo poder tribunício, cônsul, procônsul…»

Mil passos depois e estavam três colunas, duas caídas, com letras desgastadas pelo tempo, e uma de pé que tem o seguinte:
«Ao Imperador César Marco Cláudio Tácito, Pio, Invencível, Augusto, Pontífice Máximo, no segundo poder tribunício, cônsul, Pai da Pátria…»

Mil passos a seguir estão duas colunas tombadas e no fim de uma delas apenas podem ser lidas as palavras:
«Cônsul pela quarta vez, procônsul, refez».

Mil passos adiante, junto à encruzilhada a que chamam Mestas, estão quatro colunas caídas. Três têm inscrições inutilizadas, mas numa lê-se:
«O Imperador César Gaio Marco Júlio Vero Maximiano, Pio, Feliz, Invencível, Augusto, Pontífice Máximo, Pai da Pátria, no segundo poder tribunício, cônsul, Pai da Pátria, ters vezes com o poder tribunício, cônsul Germânico Máximo, Dácico Máximo, e Gaio Júlio Vero Máximo, nobilíssimo César, Príncipe da Juventude, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, quarto filho do imperador César Gaio Marco Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Valentíssimo».

Do original, livro terceiro, eis a transcrição da última coluna:


Vemos que Resende localiza os miliários encontrados, NUM TROÇO DE 5 MILHAS, à distância de uma milha uns dos outros, nas nascentes "do Alpiarça", e o último em Mestas, [concelho de Abrantes].

Perguntamos: Valerá a pena ter medo de discutir estes temas, continuando iludir a ciência e a laborar em possíveis erros, e omitindo a verdade? Em troca de quê?


* negritos do autor.