A Ribeira de Muge fica situada na orla de um dos maiores desertos humanos de Portugal, a floresta de Entre-Muge-e-Sorraia. Esta região pode exibir ainda hoje uma cultura com traços característicos muito próprios, mormente a rude cultura dos pastores, cabreiros e dos negros que aqui habitaram. São estas especificidades que a Academia persegue, "subindo ao povo", como nos diz o grande Pedro Homem de Melo, recolhe, estuda e divulga.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Democratização dos documentos da nossa História


O nascimento de Almeirim:

Núcleo Antigo, fol. 103, microf. 6189.
Após fazer a enumeração das terras e localização, diz:…

O mui famoso e da louvada memória el rei D. João [I] havendo achado seus grandes desenfadamentos de caças e montarias na charneca de Santarém, desejou fazer casas da parte dalém do rio e de Alpiarça para sua aposentadoria, porque muitas vezes embargavam seu desenfadamento as águas das cheias do Tejo. Havido seu propósito, começou logo de executar a grandeza e magnificência que era fundada em fazer sempre grandes obras, mandou comprar por seus dinheiros todas as terras da vala que jazem dentro do termo das divisões e confrontações que d[el]as havemos. E parte dessas terras houve por escambo por outras que eram da coroa do reino, tudo isto a prazer dos senhorios, à boa-fé, sem enganos. Ora, tanto que as terras foram suas as mandou cercar por grossos e altos valos e por razão dos valos levou toda a terra de dentro deles, nome “a vala”. E porque a serra se chama de Almeirim lhe puseram o sobre nome “a vala d’Almeirim”, assim é chamada até o presente dia e por este nome intitulada. Acabado este, fundou o bom rei suas casas de aposentadoria dentro na terra da vala, que é um grande e nobre assentamento de paços, segundo dão dele testemunho seus edifícios com grandes salas, câmaras, retretes, varandas e outras muitas casas nos sobrados e térreas, e dos paços com crastas [ bem povoadas de laranjeiras e outras árvores, e ao redor dos paços un grande recoito de casas, e fora do assentamento dos paços outras casas a redor todas proprias del-rei sem algum (?) haver casa, nem outra herança, dentro da vala que del-rei não sejam, e outrossim dentro do assentamento dos paços uma capela [ ] em honra da Sra Santa Maria. A qual capela esse bom rei fez anexar e apropriar dízimos que dotam cada um ano, há-de haver de dentro das divisões da vala, consumado e outorgado por o santo padre, que nos diremos mais dotam o assentamento de Almeirim…


Mapa das chãs de Almeirim
Biblioteca da Ajuda cod.. 51-X-3


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Os 440 anos do rei D. Sebastião no Paço da Ribeira de Muge


Com a morte de D. João III, em 1557, a frequência do Paço da Ribeira de Muge, pela rainha D. Catarina e pelo rei D. Sebastião manter-se-á, como o provam as suas longas estadias nos paços de Almeirim.
Padre Amador Rebelo, 1532-1622, Relação da vida d’el-rei D. Sebastião, (em Francisco Sales de Mascarenhas Loureiro), diz-nos que em questões de preferência, em três lugares onde tinha seus paços reais, em que D. Sebastião costumava ordinariamente residir, era Almeirim o primeiro.

Muitas são as histórias do rei D. Sebastião nas caçadas, nas coutadas de Almeirim e da Ribeira de Muja, conforme documentos, e como o sugerem as fugas a sua avó durante as suas longas estadias nos paços de Almeirim. São conhecidas as várias histórias de quando adolescente, o Rei Menino, passou em Almeirim excelentes férias e muitas aventuras, de tal modo se apegou a esta sua Vila Real que, como nenhum outro rei seu antecessor, aí se demorou como soberano durante longos e frequentes períodos. No Paço se atinha e governava e nos campos e bosques monteava com destreza, por vezes não muito prudente.
Causando preocupações à avó, a rainha D. Catarina, se embrenhava nos matagais das coutadas de Almeirim e Ribeira de Muge. Aquela em que aos 11 anos se atreveu a varar um javali, salvando da morte o seu aio:
«Partido de Almeirim manhã cedo, D. Sebastião e a sua comitiva de caça, viram nascer o sol já avistado o Convento da Serra. Desceram no sentido leste, do Paço da Ribeira de Muge, eis quando, nas Ferrarias, se levantou um poderoso javali. Com decisão o rei apontou a choupa ao pescoço da fera e cravou certeiramente a arma entre o peito e a omoplata. Surpreendida, a fera ainda tentou morder os corvilhões do cavalo. Era o seu primeiro javali. Uma presa real. Refeita do susto, a comitiva cercou e cumprimentou D. Sebastião que ordenou que seguissem para o Paço dos Negros, onde se jantou*.» (Henrique Leonor Pina, op. cit.).
Dona Catarina conhecia bem o Paço da Ribeira de Muge. De uma vez, aos 17 anos, estava o rei D. Sebastião em Almeirim desde 21/12/1571. E como nos diz uma carta de 10/02/1572, do cardeal a Dona Catarina, passou alguns dias no Paço da Ribeira: «elRey meu sor esta muito bem. não se lhe deve dizer algua cousa que de algua sospeita. E elRey meu sor esta nos Paços da Ribeira e não a de vir senão amanhã a noite. E também esta para ir ver V. A. logo na entrada da coresma.» (A. Simancas, Estado, legajo 390, f. 88, citado em Joaquim Veríssimo Serrão, Os itinerários de D. Sebastião, 1568-1578).
  
* Ao jantar daquele tempo, cerca do meio-dia, corresponde hoje o nosso almoço.

De D. Sebastião se contam alguns casos bem estranhos. Ainda dos escritos de Padre Amador Rebelo, (idem), o caso do rei que mostrou ter “boa boca”:
«Aconteceu uma vez que estando em Almeirim, foi com a sua comitiva a monte ver se matava um javali, que lhe tinham emprazado. Havia mandado levar o jantar. Para não errar o lanço do porco, começou el-rei a correr após ele, e correndo por muito tempo, perdeu-se.
Não tomando o caminho, ele e um fidalgo que com ele estava, subiram a um monte, e avistando um pastor com suas cabeças de gado, este lhes indicou o caminho para Almeirim, longe que estavam. Como apertava a fome com el-rei, era tarde e não tinham jantado (almoçado), disse para o pastor, tendes aí um pedaço de pão que me deis? O pastor respondeu que só um muito duro e preto, que não é para vossa mercê, que não conhecia el-rei. O rei pediu que o partisse com ele, e o comeu com tanto gosto, que disse depois que nunca em toda a sua vida comera coisa que melhor lhe soubesse.»
As fugas nocturnas à avó, a rainha D. Catarina. O caso em que posto em cima de uma árvore, esperava um javali, viu um vulto, e descendo com pressa, investiu com ele, era um negro boçal** que tinha fugido:
«Saía de noite às dez horas a passear à praia só sem companhia, e no bosque de Sintra do mesmo modo. Esperava em Almeirim posto sobre uma árvore um javali, e aplicando a vista viu um vulto, e descendo-se com pressa investiu com ele: ao estrondo acudiram alguns monteiros, imaginando seria fera; acharam porém o Rei lutando com hum negro boçal, que havia largos dias que fugindo a seu amo habitava com as feras daquele monte.» (António Caetano de Sousa, Do rei D. Sebastião, cap. XVII).
Do livro, Paço dos Negros da Ribeira de Muge, A Tacubis Romana.