1. Na senda da defesa da história do património de Paço dos Negros e da Ribeira de Muge, a Academia Itinerarium XIV da Ribeira de Muge assume o desafio da criação deste boletim. Este não é um boletim informativo com as nossas últimas novidades, ainda que as possamos divulgar por esta via. Na verdade, pretendemos que com o “Novo Caminho XIV” sejam divulgados alguns aspetos da nossa cultura e da nossa história local. A defesa da memória pode e deve ser uma constante aqui. Este boletim, que neste primeiro ano de 2020 será quadrimestral, tal como a academia, não pretende “fechar-se na sua capela”. Os textos aqui apresentados poderão ser escritos por elementos da academia ou por convidados. Caiba a referência que o boletim será disponibilizado online, nas redes sociais e no nosso blog, com a versão para impressão para aqueles que não dominarem as novas tecnologias.
2. Este primeiro número é escrito por Manuel Evangelista, um dos fundadores da academia e que participou na descoberta da dita Ponta Romana que o boletim aborda. A apresentação do “Novo Caminho XIV” esteve para acontecer durante o Dia dos Moinhos Abertos 2020 (que esteve marcado para o primeiro fim de semana de abril). Devido à pandemia do COVID19, o evento foi alterado, mas uma vez que conseguimos fazer este lançamento sem reunir pessoas, decidimos lançar o boletim na mesma, e apresentarmos nos Moinhos Abertos aquele que já será o terceiro boletim (os Moinhos Abertos foram alterados para o fim de semana de 19 e 20 de setembro). O tema abordado prende-se, precisamente, com as pontes sobre a Ribeira de Muge em Paço dos Negros, para assinalar os 40 anos da construção da atual ponte que liga este lugar ao Arneiro da Volta.
3. Caiba ainda a referência ao novo livro de Manuel Evangelista, “A vida na Herdade dos Gagos contada e vivida por Manuela dos Gagos”. Uma obra que pretende não só homenagear uma das maiores fontes orais que o autor mais tem tratado nas suas várias publicações, como também deixar registado, para a posteridade, um vasto património.
I. A Via Romana
A via Santarém-Évora é pouco referenciada pelos vários estudiosos do tema. Alarcão, 1988, diz: «Não é de excluir inteiramente a hipótese de uma ligação directa de Ebora com Scalabis e com Tubucci.», e afirma a possibilidade desta via, na passagem do Sorraia, junto à foz do rio Divor-Pé da Erra.
Mário Saa, idem, que afirma a via XIV do Itinerarium de Antonino Pio assente na ribeira de Muge, teria considerado Tacubis a sudeste de Scalabis.
O estudo de Mário Saa, afirmando a via XIV e localizando de algum modo Tacubis na ribeira de Muge, bem como a recente descoberta de vestígios de ponte, “romana”, torna a actual Paço dos Negros local de confluência da via Lisboa-Mérida com a via Santarém-Évora-Beja; a cidade ribatejana e a baixo-alentejana, ambas importantes capitais de Conventus.
(Para aprofundamento deste tema consultar EVANGELISTA, Manuel (2011), Paço dos Negros da Ribeira de Muge - A Tacubis Romana, Paço dos Negros, Edição de autor, pp. 19 a 46.)
II. A Ponte do Bispo
No século XVI era esta ponte, na ribeira de Muge, local de passagem referenciado como a “Ponte do Bispo”. Ponte porventura refeita sobre estrutura milenar.
Na Carta de Aforamento de um moinho … a Estevão Peixoto, almoxarife dos Paços da Ribeira de Muge.../... por estrada que vai de Santarém para a ponte do Bispo, da banda de noroeste parte com a minha estrada que vai para a vila de Muja, e charneca…, e da banda de sueste parte para a minha ribeira… (Juízo Tombo Real Coroa de Santarém.)
Tratar-se-à a referência ao bispo Diego Ortiz de Villegas, El Calçadilha?, frequentador assíduo do Paço de Almeirim, onde veio a morrer no ano de 1519, tendo sido sepultado no Mosteiro de Nª Sª da Serra.
Outras referências orais que encontrámos em Paço dos Negros sobre a localização desta Ponte, no ano de 2009, junto de Guilherme da Nazaré Caniço, de 83 anos, pela boca de sua avó, Jacinta Rainha, como sendo a Estrada da “Ponte do Bispo, estrada que passava a ribeira, abaixo do moinho do Pinheiro uns 200 metros.
Nos últimos séculos já se teria utilizado a madeira, de que a região é tão rica, para a manutenção da ponte. Facto que nos foi comunicado por um antigo cavador, Francisco Vital, nascido, criado e morador na Ponte Velha, que conheceu e participou no desmantelamento de grossos “prumos” em madeira de pinho verde, no lugar do Arco; onde hoje se encontram as ruínas em pedra no leito da ribeira. “Arco”, no lugar de Ponte Velha, junto a Paço dos Negros. Arco, topónimo popular vivo, que é ele sintomático, pois que hoje, devido à destruição pelo homem e ao assoreamento, não é visível qualquer arco.
De quando era jovem (c. de 1950), sobre estas ruínas, eis o que nos disse, no ano de 2009, um antigo cavador, de Paço dos Negros, nascido em 1932, José Moreira Fernandes:
«No chão, dentro da terra de arroz, estavam os prumos da ponte. A ponte saía para o lado da ribeira da Calha, (do lado esquerdo da ribeira de Muge). A estrada que saía era a direito a subir o cabeço. Não ia pela borda da ribeira, como hoje vai. (ver foto acima). Depois é que fizeram a estrada mais por dentro, pela borda da ribeira da Calha acima, e depois para a Lamarosa passou a ser pelo Arneiro Alto. Tinha dois prumos que era onde estava o tal arco. Mas o arco completo já não o conheci. Estavam dois prumos em tijolo, e eu andei lá a cavar, a arrotear a terra. Andávamos a cavar para fazer terra de arroz, e era para escangalhar os tais dois prumos.
O capataz, que era o Navalhas, dizia para o Manel Rato: – Manda a enxada! O Manuel Rato mandou a enxada, escangalhou a enxada. Partiu-se. Era dois prumos que havia dentro da terra de arroz. Devia ser coisa antiga.»
III. O achado
O achamento desta ponte, se bem que muitos já tivessem conhecimento de umas ruínas no leito da ribeira, é devido ao Mestre Eurico Henriques, no ano de 2005, o que vem não só colmatar uma grande falha sobre o conhecimento deste itinerário romano, Santarém-Évora-Santarém, como dissipar algumas dúvidas que pairavam sobre a existência desta via; talvez que seja um dos mais tardios itinerários nas vias romanas, mas vem decerto baralhar todo um conjunto de conceitos que carecem de ser reformulados.
Ainda hoje o termo de Coruche, bem como o limite da diocese de Évora, situado a cerca de dois quilómetros deste local, tocam o ponto onde assentava esta ponte. Ponte, e estrada se na margem esquerda ainda perceptível (rever foto acima), na margem direita hoje sem vestígios físicos visíveis.
Na margem direita foi levantado “o tapadão” em terra, para defender a lavra das cheias, em meados da década de 50, do séc. XX, e, segundo informações que ao autor foram prestadas por um velho tractorista, Alberto Moreira, de 80 anos, este afirma que ao lavrar a terra, na margem direita, na herdade da Ponte Velha, no encaminhamento do Tegão ora encontrado, a charrua tinha de ter menos profundidade e ainda assim raspava em empedrado.
Decerto que jazerão as ruínas dos arcos, soterradas dentro do assoreado e arenoso terreno aluvial.
2. Tegão da Ponte Romana da Ribeira de Muge, em Ponte Velha. Foto do autor.
IV. Os topónimos
Dando nome ao lugar onde estava edificada a ponte romana, Ponte Velha, porque única por longos séculos, esta ponte foi ainda decisiva na origem da denominação de lugares que lhe estão próximos:
- O próprio topónimo de Sítio do Arco, onde se situa a ponte;
- A Nordeste, o lugar de Arneiro da Volta, que, analisando a geografia e orografia do terreno, se explica o topónimo pela “volta”que era obrigatória dar para quem, deslocando-se do Alto Alentejo pela via da ribeira da Calha do Grou ou pela antiga via, pois ao encontrar-se naquela planáltica chã, obrigatoriamente se dirigia ao local de travessia da ribeira de Muge, a Ponte Romana, e nos últimos séculos, poucas centenas de metros acima, ao Porto das Carretas.
PRÓXIMO NÚMERO: António Nunes Pão-Alvo ou António Domingos - uma biografia possível
FICHA TÉCNICA:
Texto: Manuel Evangelista
Montagem e Grafismo: Maria Nélia Castelo
Apresentação: Abril de 2020
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